«Então traíste-me com a Ana…
..o que queres que te diga?», perguntou aquela voz por detrás dos cabelos sujeitos a uma Permanente de cabeleireiro de bairro periférico de uma cidade secundária. Ela, refastelada no 750, da Carris, em hora de ponta. Aqueles tons de vermelho-sebo revelavam que as parábolas seguintes seriam dignas de constar num qualquer livro a caminho da fogueira.
Ainda nem me tinha sentado e já ela tinha atirado a pérola da «traição». Resignei-me a tão sugadora sugestão de «repórter social de ocasião». «Ai é? “Tou a ser amado”, é isso? Então se és homem escreve isso», disparou ela para o outro lado do telemóvel. No outro lado da linha estava o Ricardo (vim a saber mais tarde, assim como vocês também irão saber). Um «marafado» lisboeta, apelidou-o aquela Permanente avermelhada que não tinha rosto, mas tinha umas calças de azul desbutado. E uns ténis pretos sujos. E os pés em cima do banco. E a cabeça por debaixo dos pés.
O autocarro cheio. Ela em voz alta. «O que queres que te faça? Sim, tou a falar contigo, ou queres que desenterre o meu pai da campa para falar com ele?», assim…com todo a sofisticação literária inexequível. «Não quero problemas, ainda há pouco tempo fiz um aborto para me livrar de prisões», e pimbas, assim de forma taxativa! Eu envergonhei-me e ela disparava enciclopédias de ética e moral numa velocidade que eu só pensava: “fala mais devagar, por favor, que não consigo escrever nesta porra de telemóvel”. Eu a guardar todas estas orações em mensagens…
«Homens são aqueles que assumem o que sentem», aí! Quantas vezes não tentámos dizer isto e aquela permanente acidental deixava cair um chavão para a vida. Tudo isto para logo depois desencontrar-me o raciocínio. «Tou apaixonada por um homem cabo-verdiano com quem vivo, tenho homem na mesa, tenho homem na cama, tenho homem em todo o lado»…Mau…onde estamos nós?
«Tou a 3 horas daí. O Pedrinha vai buscar-me a Lagos». Ok, do outro lado da linha, um amante. Seria o Pedrinha o homem caboverdiano? «Tenho namorado…Apaga o meu número…Passar bem», e de forma sumptuosa desliga o telemóvel. De repente atende outra chamada. Era de novo o (suposto) amante. «Pá, se é para me dares música, olha que música africana não gosto que não sei dançar». O autocarro carregado de pretos…«Estúpido de merda» e logo a seguir a desliga, de novo, o telemóvel.
O autocarro avança de paragem em paragem. Mais vazio, o som da voz académica da Permanente ecoa naquele transporte público. «Mónica, sou eu…o meu animal tá mais calmo?... Epá segura lá a fera chamada Ricardo…Pá, quando chegar lá baixo (Algarve?) vou desligar o telefone…preciso de estar sozinha…o teu irmão deu-me cá um descasca…não quero cão, o Pedrinha (ora aí está) acaba comigo… Sou humana tenho sentimentos». Claro que sim…
E eu só pensava que queria sorver toda a história. Arriscaria uma viagem mais longa para receber estes esquemas complexos dos (des) encontros dos outros. Tudo vira fait-divers e coscuvilhice barata (mas há cara é?). E só sosseguei quando ela remata em português perfeito: “quando chegar no Algarve a gente falamos”. Saí e não quis olhar para a cara da Permanente…preferi tentar perceber se estava frio na rua…
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